(Carta aberta deixada na caixa do correio, destinada ao futuro morador.)
Pelotas, sul do mundo, início de fevereiro de 2020.
Eu não conheço você, e isto cria um certo problema para escolher um pronome de tratamento ou saudação inicial para esta carta, a escrevo como um gesto duplo, é uma mensagem de boas vindas e também uma forma singela de agradecer o lugar que vivi por mais de dez anos. Gostaria de lhe apresentar este lugar pessoalmente, por muitas razoes isto é impraticável, resta então a escrita. Quero falar do apartamento que ocupa agora, da rua e da cidade.
O apartamento que lhe abriga agora foi visitado por 86 pessoas durante o tempo que ai vivi. Este número não é preciso, possivelmente subestimado. Entre estas pessoas havia gente de 5 países (Argentina, Uruguay, Colômbia, Alemanha e Moçambique) e mais de 20 cidades brasileiras. Isto me faz pensar em como um lugar de menos de 40 metros quadrados pode ser um ponto de encontro de lugares, linguagens, culturas, etc. Um lugar por menor que seja pode influenciar e tocar a vida de muita gente. Estas paredes já escutaram muitas histórias e este teto já foi abrigo de adolescentes mochileiros. Um lugar para dormir e um banho é de grande ajuda, principalmente quando se viaja com poucos recursos. Gosto de pensar que este lugar serviu de ponto de apoio para pessoas que resolveram dedicar um tempo de suas vidas a viajar pelo continente, ou de estudantes que precisavam de um lugar para ficar durante algum congresso da universidade. Este apartamento é um bom lugar para ler, tem janelas amplas e o prédio é calmo. Ele já foi mais silencioso, mas depois que asfaltaram a Avenida Barroso e com o número cada vez maior de carros, parte deste sossego foi sacrificado no altar do mitico progresso. Eu acredito que a qualidade interna do ar deve ter ficado pior com este aumento de carros, mas a prefeitura, até o momento, convenientemente, não tem dados disto no relatório ambiental da Secretaria de Meio Ambiente. Caso tenha recursos troque as janelas, instale outras de vidro duplo. Não ajuda na qualidade do ar mas garante mais silencio e isto influenciará seu sono e sua saúde geral. Dos sons que gostava de ouvir ai lembro de alguns: o sino da catedral aos domingos, a buzina do trem (possível de se unir somente com condições específicas de vento e umidade do ar), os morcegos no inicio da noite, o batuque da vizinhança, a torcida do Bento Fretas em dia de jogo e os ensaios de carnaval e fevereiro. Estas coisas fazem parte da paisagem sonora, deste apartamento. Algo tão importante e definidor de um lugar quanto paredes, portas,etc. A água da torneira vem do Santa Bárbara, parte da eletricidade do carvão queimado em Candiota, a descarga desemboca em uma usina de tratamento na zona do porto e depois no Sao Gonçalo. Nenhum lugar é uma bolha, um ambiente porta conexões.
Outro lugar que forma um apartamento é o prédio. Ele foi construído no início da década de 80, tem cerca de 40 anos. Não havia internet e o muro de Berlim ainda estava de pé. Pelas linhas e acabamentos não é difícil deduzir que foi feito por um engenheiro, tem uma informação de uma vizinha que foi uma das primeiras moradoras, diz ela que foi o único prédio que ele fez e depois foi criar gado. Seja lá como for uma das coisas que foi acertada e que mais gosto é o terraço. Uma área comum que as imobiliárias nem apresentaram-me. É uma área de uso comum, com boa vista. Eu costumava sentar aí para ler no verão, depois das 16 horas há sombra. Como nunca tive ar condicionado vez por outra em noites muito quentes eu montava uma pequena barrava iglu no terraço. Eventualmente levava almofadas e o tapete para receber amigos e/ou jantar. Acho que eu fui o morador que mais usou este terraço, os outros moradores no geral só o visitam para estender roupas. Se puder vá até o terraço. Fique de costas para a porta de acesso. Deixa eu te apresentá-lo. O quarteirão que você vê a frente é uma raridade. Ele está no centro de Pelotas e tem apenas um edifício. Todas as outras edificaçoes são casas, com grande parte com telhas de barro francesas, que ainda permitem os gatos a caminhar, sempre achei super fotogênico ver os gatos a caminhar nos telhados. Há uma pequena janela de uma casa da década de 50 que é circundada por uma hera, ao longo do ano aquele parede muda de cor. Fica verde, depois amarelo, vermelha e depois com galhos. Uma parede camaleão. Agora se desloque para seu lado esquerdo e encoste na chaminé do vizinho. Eu acho que esta é a chaminé de churrasqueira mais alta da cidade, tem 4 andares. É muita vontade de fazer churrasco. Há um cartão postal escondido ai. Deste ponto voce consegue enxergar uma parte da cúpula da catedral. Deste mesmo ponto a suas costas há no quintal do vizinho uma paineira, ela fica linda florida. Agora vá para direita. Na mesma parede da porta, conseguirá ver parte da arquibancada do Bento Freitas. Houve uma época em que era possível ver os guindastes do porto, mas com a explosão imobiliária a linha do horizonte está cada vez mais vertical e fragmentada. Entre no prédio, desça as escadas, quero falar dos vizinhos.
Há doze apartamentos no prédio. São habitados por idosos aposentados, estudantes e adultos jovens sem crianças. No primeiro piso no 201, é habitado pela moradora mais antiga, foi uma das primeiras moradoras do prédio. Ela gosta de novela, se enredava com o controle remoto da tv a cabo que a filha, que é advogada e não mora com ela, mandou instalar, por muitas vezes me pediu ajuda para acertar a tv. Hoje há uma cuidadora com ela, sofre de Alzheimer. Tenha paciência, terás de fazer isto muitas vezes. Ela se lembra de meu nome, mas acha que eu me mudei sempre há uma semana. “Te mudaste para cá?” – me perguntou inúmeras vezes, eu sempre dava a mesma resposta mas sentia um certo impulso de contar uma história diferente, nunca o fiz por respeito, mas dava margem para internamente responder de muitos modos e ser um exercício de criatividade. No 202 há um senhor advogado que mora sozinho, eu nunca nos falamos muito, infelizmente há um ano ele está com câncer de estômago, está mais suave, me passa a sensação que percebeu a finitude da vida, um dia não faz muito conversamos no corredor por cerca de 40 minutos, sobre sua doença e velhice, foi a conversa mais amigável e sincera que tive com ele em todos estes anos. Ele ja viajou muito, conhece Havana e Santiago do Chile, entre outros lugares, fiquei surpreso com isto, ao saber que tenho algo em comum que não só o prédio. O 203 é habitado pela senhora mais jovial do prédio, ela já morou em Sao Paulo e Porto Alegre, se perde no celular e já bateu na minha porta para ver o que aconteceu com o aparelho, ajude ela com o celular e terá uma costureira de mao cheia a um andar da sua porta. No 204 mora com a companheira um rapaz, professor de artes marciais, gosta de falar de lutas e agora também atua como coaching, a mae dele morou anos neste apartamento, quando ela faleceu ele veio para cá. Eles em um cachorro pequeno. No apartamento 301 mora um casal de estudantes. O garoto faz veterinária a menina não sei. Ele trabalha a entregar comida nos aplicativos e tem um gato preto que nunca sai do apartamento, não consigo entender como um veterinário tem um cato confinado que nunca sai, sobe em uma árvore sou faz coisas de gato, como as pessoas sentem, as pessoas sempre sentem de algum modo, ele não me comprimento nunca, ela diz oi. Estao a menos de um ano no prédio. No 302 mora um jovem de uns 28 anos, ele trabalha no shopping, gosta de ficar com garotos e estaciona o gol branco no corredor da garagem, pelo condomínio nao poderia, já que ele nao tem vaga própria, nao faço caso, ele é o tipo de cara que é gentil, nos surpreendeu ao trazer água quente e café no último final de semana no apt quando já tinhamos vendido o fogão, além disto em um emprego de shooping 200 reais de custo mensal a mais faz muita diferença. O 303 está vago há tempos, morava ali um programador de video game, que vivia viajando e fazia aula de banjo, morou ali por cerca de 1 ano. O 304 está vago há muito tempo, a última moradora foi uma garota que era professora de inglês, um dia bateu na nossa porta com uma nota de dez reais que tinha achado na escada a perguntar se era nossa, nao era, mas me impressionei com o gesto. Ela se mudou para o Rio de Janeiro faz mais de 2 anos. No 401 há uma moradora que é gerente de uma loja de roupas no centro. Ela tem uma vida muito simples, viaja para SP seguido para comprar roupas e perdeu o namorado não faz muito. Acho que ela trabalha muito, tem uma cara de cansada, ela se dá bem com os mais idosos do prédio e acho isto bonito. No 402, mora uma senhora de Santa Vitoria do Palmar, ela quase nunca esta em casa, tem o aparatmento para passar temporadas em Pelotas. No 403, mora uma aposentada da prefeitura. Foi a primeira a ter uma grade em frente a porta, ela realmente tem muito medo de assalto, se quer conseguir estima dela deixe claro que fechará a porta do prédio e a ajude a carregar compras escada acima, ela tem um problema na coluna que está a ficar pior com a idade. Não falo dos nomes das pessoas, te passo algumas informacoes para sentir vontade de as conhecer. Os vizinhos determinam da qualidade de vida de uma morada, de dois anos para cá, tenho valorizado mais isto. Sinto como uma movimento de resistência a atomização social crescente, base de muitas de nossas misérias e prato cheio para políticos oportunistas. Dividir para conquistar e dominar, funciona bem desde a época da colonização. Penso muito também em quanto os lugares afetam a vida dos idosos e como as cidades sao inóspitas para estas pessoas. Este prédio ficaria mais seguro para eles com sensores de iluminacao e corrimãos mais firmes. Penso que cadeiras no terraço para tomar sol seria ótimo para todos. Fica a sugestão.
Agora que já escrevi o apartamento e o prédio, quer falar da rua. Dr. Cassiano ( a sonoridade em espanhol fica cômica, soa para os argentinos como Dr. Quase Ânus, aliás o nome da cidade para eles já é motivo de riso). No fim da rua há um muro. É uma rua que termina em um muro em uma ponta e no Arroio Pepino em outra. Na extremidade do muro o pessoal desenha no asfalto, nas festas juninas, copa do mundo e as vezes em motivo, é bonito ver a rua como algo que se pode desenhar. No outra ponta agora há o ginásio municipal e um campo, um quarteirão todo que nao tem uma casa construída, acho que é da prefeitura, mas é uma área verde que tem boa luz a tarde. Na quadra e frente ao prédio ha uma casa rosa, é de um pastor da igreja Anglicana, e com um intervalo de apenas uma casa, uma morada de uma mae de santo que até a bem pouco fazia oferendas na esquina da Barroso. Nesta quadra também mora ao lado da barbearia uma descendente de japoneses, o pai dela era alemão, a avó veio do Japão. Ela tem primos em Tóquio. Tóquio está ali na esquina. Pastor anglicano e mãe de santa, alemães e japoneses, coisas do Brasil, coisas da nossa maior riqueza, a mistura.
Eu poderia escrever mais, mas quero deixar voce descobrir por si mesmo este lugar. Sou profundamente grato a estas paredes, a esta rua e cidade. Bem na esquina com a rua Santa Cruz, a cem metros a oeste do porta do prédio, há um ipê roxo. Creio pelo porte que é a árvore mais antiga de toda a rua, quando passar por ali, toque na casca desta árvore. Sinta nisto meu aperto de mãos, desejo de que este lugar lhe abrigue e fortaleça como fez a mim.
Cordialmente,
Lucio